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Reforma tributária e incentivos fiscais

02.04.2023



Congresso deve individualizar incentivos fiscais para que a reforma não afete direitos e garantias promovidas pelo Estado


FÁBIO MARTINS BONILHA CURI



Nos últimos meses, muito se discute sobre as possibilidades de reforma tributária no Brasil. Apesar de ser um tema antigo e que, de tempos em tempos, volta à tona, sempre fica a expectativa de que uma grande mudança está por vir. Atualmente, duas propostas ganham destaque nessa discussão: a PEC 110/2019, em trâmite no Senado, e a PEC 45/2019, em trâmite na Câmara dos Deputados.


No que diz respeito a incentivos fiscais, aparentemente, a intenção de ambas é reduzir/extinguir os benefícios incidentes sobre bens e serviços. Especificamente

sobre essa questão, a PEC 110, em seu último modificativo[1], permite a concessão de benefícios fiscais nas operações com alimentos (inclusive aqueles destinados a consumo animal), com medicamentos, com transporte público coletivo de passageiros urbano e de caráter urbano, com bens do ativo imobilizado, com saneamento básico; e com educação infantil, com ensino fundamental, médio, superior e educação profissional.


Já a PEC 45, também em seu último modificativo[2], não permite a concessão de qualquer benefício, havendo um forte argumento por parte da equipe responsável pela reforma de que o aumento na quantidade de benefícios impactará diretamente na alíquota única a ser fixada, tendo em vista que a proposta visa manter a carga tributária atual[3].


Por outro lado, ambas as propostas preveem a possibilidade de devolução do imposto recolhido para os contribuintes de baixa renda, o que será regulamentado por lei complementar. Tal proposta parece ser bastante interessante e deve se basear em modelo semelhante ao adotado pelo Rio

Grande do Sul, que criou em 2020 o programa Devolve ICMS[4].


Apesar de a iniciativa de devolução ser louvável e importante, a promoção da ideia de extinção ou mesmo redução genérica dos incentivos fiscais existentes é perigosa e precisa ser analisada de forma mais densa pelos parlamentares no momento das discussões e aprovações da reforma. Uma análise superficial do tema pode fazer parecer que os incentivos fiscais são meros favores concedidos pelo Estado a setores privilegiados e, por tais razões, não precisam ser mantidos, haja vista que a sua manutenção exige que todos “nós” arquemos com uma alíquota mais alta.


Ocorre que a questão é muito mais complexa, pois diversos incentivos fiscais são essenciais para a promoção de importantes direitos sociais constitucionalmente previstos e essa função do Direito Tributário, aparentemente, não vem sendo debatida nas propostas de reforma, tal como outros temas.

Para não estender demais a discussão, vejamos o caso de dois incentivos fiscais que possuem funções sociais importantes a saber:

• o que acontecerá com os incentivos fiscais existentes na legislação de IPI, ICMS para pessoas com deficiência, tais como os incentivos para aquisição de veículos automotores?


• o que acontecerá com os incentivos fiscais que garantem a existência e permanência de diversas pessoas carentes nas universidades por meio do


Prouni? Tais incentivos serão substituídos ou serão simplesmente extintos?

É importante destacar que o tema incentivo fiscal se insere em outro ainda mais

amplo, pois diz respeito às funções que os tributos possuem[5]. Isso porque tributos apresentam funções que vão muito além do aspecto meramente arrecadatório e constituem, desde Roma[6], meios de modulação de conduta ou, utilizando-se a expressão adotada por Luis Eduardo Schoueri, constituem-se por meio de normas tributárias indutoras[7].


Os exemplos históricos demonstram que a utilização do tributo como meio indireto para o alcance de objetivos públicos é técnica utilizada há muito tempo e figura-se como meio legítimo para atingir os objetivos estatais[8].


E uma das formas de se utilizarem tributos para atingir finalidades extrasociais é, justamente, por meio de concessão de benefícios tributários. As leis de incentivo

são a consagração desse modelo e estão disseminadas no Brasil e no mundo[9]. Hugo de Brito Machado afirma que incentivo fiscal “é a isenção, ou outra qualquer vantagem fiscal, concedida por lei como forma de estimular ou desestimular

determinado comportamento na ordem econômica”[10]. De forma semelhante, Roque Carraza enfatiza o aspecto funcional ao definir incentivos fiscais que, segundo ele, podem manifestar-se de diversas maneiras, como isenções, remissões, parcelamentos ou qualquer outra forma que se traduza em

mitigações ou reduções da carga tributária[11].


Dos conceitos acima, é possível concluir que incentivos fiscais não são meros favores estatais e sua extinção/revisão precisa ser feita com muita parcimônia, principalmente, quando são utilizados para garantir direitos sociais, tais como os incentivos direcionados a pessoas com deficiência (PCD) e os incentivos fiscais direcionados à promoção da educação.

O Prouni, por exemplo, foi instituído pela Lei 11.096, de 13 de janeiro de 2005, e que há quase 20 anos trouxe significativo impacto na promoção da educação no Brasil. O objetivo da lei foi a concessão de bolsas de estudo integrais para estudantes com renda per capita familiar máxima de até um salário mínimo e meio e bolsas de estudo parciais de 50% ou de 25% para estudantes com renda per capita familiar máxima de três salários mínimos, egressos do ensino médio da rede pública ou de rede particular na condição de bolsista integral ou

parcial[12]. Em troca das referidas bolsas, as instituições privadas de ensino superior fazem jus à isenção dos tributos federais incidentes sobre o faturamento e sobre o lucro.


Estudos do Ministério da Educação demonstram alguns números importantes a respeito do programa que já está em vigor há quase duas décadas. Dentre os números públicos disponibilizados mais recentemente, destaca-se que no ano de 2020, 1.600 alunos que conseguiram bolsa completaram 50 anos ou mais em seu primeiro ano de curso superior. Além disso, 59.346 pessoas beneficiadas se declararam do sexo feminino e de raça preta ou parda, representando em números relativos uma importante ferramenta de inclusão e redução das desigualdades sociais no país. Dados consolidados demonstram que o Prouni já

atingiu quase 3 milhões de pessoas[13].

Percebe-se a abrangência do programa. No entanto, resta saber se a renúncia fiscal foi condizente com a promoção do ensino do programa. Segundos dados

da Receita Federal[14] para o ano de 2023, houve uma previsão de renúncia fisscal equivalente a aproximadamente R$ 456 bilhões nos mais diversos setores da economia, sendo que a renúncia estimada para o Prouni representa 0,70% do total estimado, enquanto a renúncia ao simples nacional, à Zona Franca de Manaus, à agricultura e aos rendimentos isentos e não tributáveis de imposto de renda pessoa física (IRPF) representam juntos mais de 50% do total de renúncias.

  

O cálculo preciso, por aluno, não foi possível realizar por ausência de dados constantes no site do MEC que mostrem os números de bolsas em andamento. Tampouco foi possível estabelecer os números da Receita Federal que são estimados. De toda forma, há estudos[15] que indicam que “o custo-aluno foi, em média, R$ 3.381,43/anual ou R$ 281,78/mês por bolsista”.


Nas linhas acima também destaca-se a renúncia federal relativas a automóveis adquiridos por pessoas com deficiência. Sobre o assunto, é popular no país o referido incentivo incidentes sobre a aquisição (IPI , IOF e ICMS) de veículos

automotores.


Segundo o IBGE[16], 17 milhões de brasileiros possuem algum tipo de deficiência. Detalhando-se esses números, é possível verificar que as pessoas com deficiência têm menos participação no mercado de trabalho, recebem 2/3 dos rendimentos do que as pessoas declaradas sem deficiência e menor taxa de frequência escolar. Números graves que estão em desacordo com as previsões constitucionais e legais existentes que determinam a promoção de direitos e

integração das pessoas com deficiência em todos os âmbitos sociais[17].


Em meio a esse emaranhado de números que representam dificuldades, surge o alento à pessoa com deficiência de adquirir veículos com isenção de impostos que, em âmbito federal, representou menos de 0,18% da renúncia tributária prevista para o ano de 2023.


Porém, o que se verifica, é um discurso superficial e geral de que os incentivos fiscais devem ser extintos ou reduzidos, pois acarretam oneração a todos nós. “Nós, quem, cara pálida?”


Tal como o direito à educação, a promoção de direitos que permitam a adequada inclusão da pessoa com deficiência na sociedade não são favores estatais que podem ser simplesmente extintos ou reduzidos. Ao contrário, tais incentivos são formas encontradas pelo Estado (talvez a menos onerosa) de promover direitos e

garantias consolidadas na Constituição Federal[18].


Logo, é importante que os representantes do Congresso, os debatedores e pesquisadores do tema aprofundem e individualizem os incentivos fiscais, que a reforma tributária não afete direitos e garantias promovidas pelo Estado brasileiro por meio de incentivos fiscais.


Sobre o assunto, o secretário extraordinário da reforma tributária, Bernard Appy, afirmou: “Quanto mais exceção tiver, quanto mais setores favorecidos, maior terá de ser a alíquota para os demais setores para manter a carga tributária” Fonte: Agência Câmara de Notícias.


Alessandro Mendes Cardoso sustenta que o tributo deve ser compreendido como um dever fundamental de solidariedade, sendo ‘instrumento a serviço da política social e econômica do Estado redistribuidor’, ao lado de sua clássica concepção de ‘meio primordial de sustento do Estado’. A ideia de solidariedade na tributação está referida também na doutrina de Álvaro Bereijo, para quem, numa análise jurídico-política, o dever fundamental de pagar impostos cumpre tripla função: (i) legitimação do tributo, que tem fundamento no dever de solidariedade dos cidadãos de contribuir ao financiamento dos gastos públicos; (ii) de limite e garantia jurídica, constrangendo o poder estatal de tributar; e (iii) de orientação programática da atuação dos poderes públicos, em direção à criação de um sistema tributário justo. Fixe- se, portanto, que os tributos já não podem ser considerados apenas instrumentos de arrecadação”. Op. Cit., p. 27-28.

[6] Vide notas de rodapé nos. 31 e 32.

[7] “A opção, neste estudo, pela referência às ‘normas tributárias indutoras’, em lugar dos ‘tributos indutores’ ou ‘tributos arrecadadores’, deve-se à premissa de que as últimas categorias dificilmente se concretizariam, em sua forma pura.


De um lado, por mais que um tributo seja concebido, em sua formulação como instrumento de intervenção sobre o Domínio Econômico, jamais se descuidará da receita dele decorrente, tratando o próprio constituinte de disciplinar sua destinação. Fosse irrelevante ou indesejada a receita proveniente dos chamados ‘impostos extrafiscais’, não haveria porque o constituinte contemplá-la. Por outro lado, a mera decisão, da parte do legislador, de esgotar uma fonte de tributação no lugar de outra implica a existência de ponderações extrafiscais, dado que o legislador necessariamente considerará o efeito sócio-econômico de sua decisão.


Nesse sentido, resumindo o posicionamento econômico sobre o tema, Gustavo Miguez de Mello e Luiz Carlos Marques Simões afirmam que “muitos renomados economistas consideram os incentivos fiscais um dos pilares da ciência econômica. Asseveram eles que as pessoas adoram e reagem a incentivos. Nas palavras dos economistas da Universidade de Chicago, Steven D. Levitt e Stephen J. Dubne, são ‘a pedra angular da vida moderna e que a economia é, basicamente, o estudo dos incentivos’. A apologia desse estímulo fiscal no mundo econômico é tamanha que ‘o economista em geral acredita que o mundo ainda não inventou um problema que ele não seja capaz de resolver se tiver liberdade para conceber o necessário esquema de incentivos’ nas palavras de Michael J. Sandel”

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